domingo, 14 de outubro de 2012

Epitáfio*


Não sabia muitas coisas sobre ele, mas imaginava muitas. Imaginava-o nascendo, criança feliz e amada, como todas as outras, usando touca e sapatinhos de lã. Imaginava-o um pouco mais crescido, gritando para a mãe na cozinha que ia para a rua jogar bola mais os irmãos e os vizinhos. Imaginava-o indo dormir entre risinhos, depois de o pai chegar nervoso do trabalho, e ficar mais irritado ainda por ver criança acordada em horas que não deveria estar.

Imaginava-o disperso na aula de matemática, escrevendo versos para a menina de cabelo comprido que se sentava duas cadeiras a frente dele. E imaginava também o dia que ele, no caminho da escola, virou numa esquina errada, encontrou um grupo de meninos chegados em outras paradas e nunca mais conseguiu achar o caminho de volta.

Mas nada disso tinha muito potencial para ser verdade. O único fato que ela podia constatar, todos os dias, quando caminhava por aquele longo corredor de hospital, era a atual realidade dele: sozinho no quarto, sem visitas. 

Não era médica, nem enfermeira. Exercia uma função administrativa qualquer e passava por ali apenas para conseguir chegar mais rápido à sua sala. Mas sempre que chegava ao 701, embora os pés continuassem seguindo corredor a frente, os olhos adentravam pelo quarto tentando entender alguma coisa que nem ela sabia que nome dar. Era um morador de rua, sem nome, sem documento. A solidão e o anonimato dele a chocavam mais do que a doença. 

Dias depois, ao passar pelo corredor, viu que outro paciente ocupava o leito. Não precisou imaginar muito para entender o que se passou desta vez. Mas além dela, ninguém mais soube. Nem a mãe, nem o pai, nem os irmãos, nem os vizinhos, nem os colegas de escola ou a menina de cabelo comprido, ninguém chorou. Só ela.

*Em memória do moço que nem o nome eu soube.