domingo, 26 de agosto de 2012

Atenção para o espaço entre o trem e a plataforma


Aquele dia acordou atrasada. Dispensou o café da manhã, escovou os dentes, mas saiu sem pentear os cabelos. Prendeu-os num coque e correu para o ponto de ônibus. Nenhuma das pessoas costumeiras estava lá, significando que ela até poderia ter tomado seu desjejum, pois não havia muito a ser feito. 

Para não perder mais tempo, resolveu ir de metrô, que era mais rápido, mas não mais cômodo, tendo em vista que ela teria que pegar outro ônibus quando chegasse à estação central.  Mas talvez fosse a alternativa mais rápida naquele momento, para não se atrasar tanto em seu primeiro dia de serviço.

 Tinha um metro e meio e não pesava nem cinquenta quilos. Quando chegou a estação, foi facilmente empurrada pelo mar de gente para dentro do vagão, mas não conseguiu se sentar. Também não conseguia se segurar. Ficou se apoiando nas pessoas, ou sendo esmagada por elas, dependendo do ângulo que se olhava.

Quando chegou a estação de destino, tentou sair, mas o fluxo contrário de pessoas fez com que ela fosse parar na direção oposta à porta. Foi assim em todas as estações seguinte, em todos os dias que se seguiram.

Um dia, por causa de uma modernização que iria acontecer no transporte sobre trilhos, o vagão foi desativado. Dentro dele, os operários encontraram uma simpática velhinha, de cabelos brancos presos num coque, que não se lembrava para onde ia, nem a razão de estar ali. Só sabia que estava atrasada. 

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

All Star

Fazia frio e, embora ela quisesse calçar tênis e meia, colocou um sapato de bico fino. Mas não dispensou a calça jeans que, escura, compunha um visual harmônico com o sobretudo preto, caindo bem para a ocasião de trabalho. 

Contava pouco mais de 25 anos, mas todos os dias, desde muito tempo, eram assim: acordava antes do sol nascer e tomava um ônibus no qual todos os assentos já haviam sido ocupados, e por duas horas - tempo gasto até o trajeto final - ficava a conversar consigo mesma. Algumas pessoas preferiam ouvir música, mas era tanto barulho na rua, que ela achava judiação com os cílios auditivos ter que colocar o som no último volume para conseguir ouvir alguma coisa do fone.

Pensava em todos os discursos de independência feminina que ouvira e em todos os planos de ascensão profissional que fizera antes e durante a faculdade, que naquela hora, nada mais pareciam ser além de discursos mesmo. Por culpa deles estava ali, com sono, com o pé apertado e fazendo malabarismos para segurar a bolsa enquanto se apoiava em uma das barras do ônibus para não ser derrubadas pelos solavancos.

Ao lado dela, uma menina de alguma periferia, que acabara de rodar a roleta, pedia alguma informação para o cobrador. Tinha traços adolescentes ainda, usava os cabelos, bem crespos, presos num rabo de cavalo, e embora fizesse frio, usava apenas um short, deixando as pernas descobertas, agasalhando apenas a parte de cima com um casaco uns cinco numeros maiores que ela.

Olhou para os pés da menina, que calçavam um all star rosa. Teve inveja. Do tenis, das pernas de fora, dos muitos anos pela frente para começar a fase adulta de outro jeito, da liberdade de poder saltar em qualquer ponto, se assentar no primeiro banco de praça e ser aquecida pelo sol de antes das 9 horas. Sem ter que pensar em horários. Sem se preocupar com figurinos apropriados para reuniões. Sem se preocupar em ter que ter sucesso, no que quer que fosse. Sem ter que se preocupar com discursos sexistas.

A menina saltou do ônibus, e seu all star ligeiro a levou para longe das vistas de qualquer possível observador que a espreitasse pelas janelas do coletivo.

Num impulso quase selvagem, tão irracional quanto espontâneo, ela puxou a cordinha e deu sinal para descer no ponto seguinte. Mas, quando o ônibus parou e as portas se abriram, viu no relógio digital da rua que faltavam apenas 10 minutos para uma reunião importante, que ela, naquela hora, já estava atrasada.

Como ninguém desceu, a porta do ônibus se fechou e o motorista seguiu seu curso. Além das horas, o relógio da rua marcava 12°C.

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Um sábado qualquer de agosto


Estava triste e feliz ao mesmo tempo. Feliz pelo amigo, que tinha ganhado uma bolsa de estudos na Europa; triste pelo tempo e os quilômetros que iriam aumentar entre eles, que já alimentavam uma saudade antecipada, meio chata para gerenciar. Pegou o avião, ensaiou um abraço, e se preparou psicologicamente para recebê-lo de novo só daqui a dois anos.

Quando pousou, eram três: ela, ele, e o outro do Rio, que estava lá pelo mesmo motivo que ela. No dia seguinte, seriam cinco, quando chegassem os outros de São Paulo. Mas naquele dia, dentro de um ônibus que os levaria para o destino pretendido, o amigo sentiu saudades do pai. Contou histórias engraçadas e deixou, ela e o outro do Rio, com vontade de conhecê-lo.

Desceram e viraram numa esquina que não estava no roteiro, tocaram a campainha e foram recebidos com gelatina e soda. E um videokê.

Se tem uma coisa capaz de parar o tempo e mudar o rumo das coisas, é um videokê. Isso ficou muito claro àquele dia. Cantaram músicas que não costumavam ouvir, se divertiram ao som de outras que não costumavam gostar, e no movimento normal das ondas, que transporta energia sem transportar matéria, a música ia levando para o infinito as coisas velhas, e trazendo para aquele momento um sentimento novo, ou há muito esquecido.

Enquanto o amigo cantava, o pai olhava-o com olhos admirados, como o criador que observa a criatura e sente orgulho de si mesmo. E o amigo, ao corresponder o olhar, encontrava novamente no pai o herói perdido da infância.

Ela sentiu uma ponta de inveja, tentou lembrar se já tinha sido olhada assim por seu pai algum dia. O amigo do Rio sentiu o mesmo, confessou depois.

Mas invejas à parte, tudo era só música naquele momento, e se o mundo acabasse, não perceberiam.

Quando os de São Paulo chegaram, mais tarde, todas as conversas giravam em torno do momento, que naquela hora, já era só lembrança.

Três dias se passaram e a música calou, cerrando os olhos orgulhosos do pai. Os olhos do filho procuraram o herói, mas ele tinha voltado para a infância. Inesperadamente, sem que ninguém imaginasse, toda felicidade dos três agora era só uma fotografia.