quarta-feira, 22 de agosto de 2012

All Star

Fazia frio e, embora ela quisesse calçar tênis e meia, colocou um sapato de bico fino. Mas não dispensou a calça jeans que, escura, compunha um visual harmônico com o sobretudo preto, caindo bem para a ocasião de trabalho. 

Contava pouco mais de 25 anos, mas todos os dias, desde muito tempo, eram assim: acordava antes do sol nascer e tomava um ônibus no qual todos os assentos já haviam sido ocupados, e por duas horas - tempo gasto até o trajeto final - ficava a conversar consigo mesma. Algumas pessoas preferiam ouvir música, mas era tanto barulho na rua, que ela achava judiação com os cílios auditivos ter que colocar o som no último volume para conseguir ouvir alguma coisa do fone.

Pensava em todos os discursos de independência feminina que ouvira e em todos os planos de ascensão profissional que fizera antes e durante a faculdade, que naquela hora, nada mais pareciam ser além de discursos mesmo. Por culpa deles estava ali, com sono, com o pé apertado e fazendo malabarismos para segurar a bolsa enquanto se apoiava em uma das barras do ônibus para não ser derrubadas pelos solavancos.

Ao lado dela, uma menina de alguma periferia, que acabara de rodar a roleta, pedia alguma informação para o cobrador. Tinha traços adolescentes ainda, usava os cabelos, bem crespos, presos num rabo de cavalo, e embora fizesse frio, usava apenas um short, deixando as pernas descobertas, agasalhando apenas a parte de cima com um casaco uns cinco numeros maiores que ela.

Olhou para os pés da menina, que calçavam um all star rosa. Teve inveja. Do tenis, das pernas de fora, dos muitos anos pela frente para começar a fase adulta de outro jeito, da liberdade de poder saltar em qualquer ponto, se assentar no primeiro banco de praça e ser aquecida pelo sol de antes das 9 horas. Sem ter que pensar em horários. Sem se preocupar com figurinos apropriados para reuniões. Sem se preocupar em ter que ter sucesso, no que quer que fosse. Sem ter que se preocupar com discursos sexistas.

A menina saltou do ônibus, e seu all star ligeiro a levou para longe das vistas de qualquer possível observador que a espreitasse pelas janelas do coletivo.

Num impulso quase selvagem, tão irracional quanto espontâneo, ela puxou a cordinha e deu sinal para descer no ponto seguinte. Mas, quando o ônibus parou e as portas se abriram, viu no relógio digital da rua que faltavam apenas 10 minutos para uma reunião importante, que ela, naquela hora, já estava atrasada.

Como ninguém desceu, a porta do ônibus se fechou e o motorista seguiu seu curso. Além das horas, o relógio da rua marcava 12°C.

6 comentários:

  1. Muitas de você no texto :) e muito queijo nesse fundo do blog hein :P

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  2. já disse uma vez, mas vou dizer de novo: adoro os seus contos!

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    1. E eu já disse mais de uma vez, mas vou dizer de novo: eu adoro a sua pessoa :D

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  3. Olá Jenny, tava lendo os textos mais antigos e acho tudo muito interessante, parece ser como eu só de um ponto de vista mineiro e feminino; tentar entender o mundo ao redor é um grande desafio e exige muito da gente, no final, estas reflexões, são como deixar um pedaço de nós por aí, por situaçoes do dia a dia como se fossem crônicas da vida. Ok.. não quero criar um de meus posts nos comentários. rs

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    1. Oh, que bonito vc por aqui! Ah, eu apaguei os textos mais antigos, mas eu tenho eles guardados, um dia te mostro minhas "histórias reais inventadas". Mas é bem por aí msm, eu gosto de pegar uma situação cotidiana, minha ou não, e ficar fantasiando em cima, sei lá, acho que é uma forma de enxergar a beleza da vida no meio de tanta correria. E adoro Minas, para mim, esse lugar é poesia pura, então vai ver deixo escorregar isso nos textos, nunca prestei atenção hehe. E pode deixar um post nos comentários! Adoro seus posts, então nem ligaria.

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